sábado, setembro 09, 2006

Capítulo, Décimo?

Não fiquei satisfeito, mas foi isso pro concurso da unicamp. Tenho duas cronicas pra colocar aqui, assim que tiver saco de digitar. Uma no papel, outra na cabeça.


Pra Juliana lembrar





Aquelas escadas, um dia tão grandes, agora mal cabiam num pulo. Os degraus, cinzas e frios, há muito tinham desbotado e esquecido a aspereza, gasta pelos sapados da moda de outra época. Abaixou-se com alguma dificuldade e tristemente acariciou a superfície suja buscando lembrar as brincadeiras daquele novo antigo saguão.

Conforme iam adentrando o apartamento surpreendentemente pouco familiar, com gravidade o corretor indagou da gravidez.

- Vai bem, sete meses já – respondeu tomando a aspereza perdida.

Quando criança, até a metade de seus anos impubescentes, havia vivido tranqüila e pueril naqueles prédios baixos. Sem irmãos, a garota delgada costumava debruçar nas janelas ensolaradas e ver os meninos brincarem no térreo. O sol, não mais aquecia aquelas venezianas e a sombra de tantos prédios esfriava a terna vista. As crianças haviam ido para tantos outros lugares e ficaram, reclusos naquela capital autofágica, apenas seus envelhecidos pais.

Sentiu o enorme peso da barriga fraquejar as cansadas pernas e, na sala de memórias, acomodou-se numa poltrona puída, abandonada por algum antigo morador.

- Esta sala – puxou o corretor calvescente – é bem ampla. Com uma nova pintura e uma decoração apropriada, será um ótimo lugar para criar seus filhos. Seu marido...

Desfazendo o sorriso falso no semblante, curvou-se levando a mão à barriga e expressando algo como uma ligeira dor.

- Está tudo bem?

- Claro, foi só uma pontada. Gases provavelmente – adorava como a gestação era oportuna para abortar conversas indesejadas – mas irei verificar sobre o apartamento e retorno para o senhor até amanhã.

No táxi até a rodoviária e novamente no ônibus até sua cidade, foi revendo suas anotações dos diversos apartamentos visitados, espalhados em sua passageira mesa natural. Entre um e outro chute do bebê, pensava se queria dar-lhe a mesma infância que tivera.

- Para Juliana, a mamãe pensando.

A declaração atraiu sorrisos de simpatia de uns três passageiros que tiveram de ser retribuídos. Voltando a tentar se concentrar na tarefa de escolher um lar, notou a recorrente intuição que compelia a escolher e rejeitar aquele último apartamento. Pensou nisso por toda viagem sem chegar a conclusões satisfatórias.

Logo chegou em casa, contou a mãe que seu antigo apartamento estava vago.

- E vocês vão alugar? – indagou a futura avó precoce.

- Não sei, tem que ver com o Juan.

- Mas melhor tomar pressa, de hoje a uma semana, ele tem que estar lá. O seu Oswaldo conseguiu-lhe o emprego de muito bom grado, mas só porque seu pai e ele são amigos há muitos anos. E não fosse você desse jeito, nem teria pedido. Você bem sabe, Julia, que ele nunca gostou muito do seu namorado.

- Ultimamente nem eu tenho gostado - confessou.

- Conversa de grávida que só diz o que os hormônios querem. E seja como for, agora já faz tarde para não gostar mais.



Convenceu-se. Iria pegar aquele mesmo. E convencer Juan não seria difícil, já que estava às cegas em relação ao apartamento. Não fossem seus exames finais, poderia ter ido junto ajudar na escolha, mas tardava o ano e ele nunca fora um aluno brilhante. Somente uma ou duas provas mais e ele estaria formado no terceiro ano e pronto para começar uma vida com uma futura esposa e um menos futuro filho.

Passados alguns dias, tudo estava acertado e Juliana ficava cada vez mais inquieta. Por isso, Julia carregou poucas coisas (algumas sacolas e roupas) da escassa quantidade amontoada para a mudança. E chegada a hora de descarregar, ajudou ainda menos, apenas levou duas sacolas em sua única subida dos três lances de escada. Por recomendações médicas, qualquer esforço maior deve ser evitado no ultimo trimestre.

Com o tempo, veio a se acomodar novamente naquele espaço. Os ladrilhos do banheiro lembravam-na de antigas historias, como os inocentes banhos que tomava junto a seus primos e primas na banheira. E, nem passada uma semana da solidão ali, desistiu do projeto de ler mais e passou a inventar novas decorações para a sala sem sofá, a cozinha com sua mini-geladeira ou o quarto com o colchão ao chão e o berço novo, imóvel, ao lado.

Chegadas as noites, contava suas idéias para o, agora, noivo (após um pedido nada romântico, no dia da mudança, para ser a senhora Delagro) que reagia apenas com frases como "Interessante" ou "Não temos dinheiro para isso". Era apático, mas isso não a incomodava mais. Desde sua chegada, talvez por não ter outra companhia além das velhas amigas da mãe que apareciam eventualmente para fofocar, ela passou a amar aquela inquieta criança, Juliana. Pensou que isso só aconteceria após o parto.

- Pára, Juliana, a mamãe tá desenhando.

Os dias já eram todos iguais e a rotina de dona-de-casa, grávida, que não amava o pai da filha passou a não lhe incomodar mais. Não se deixou abalar nem quando numa briga ele declarou "Só estou com você porque está grávida".

Decerto houveram desculpas, flores e infinitos "eu te amo" depois , porém nada realmente lhe tirou a convicção de ser verdade para ambos.

Estava no oitavo mês quando notou que Juliana já não se mexia mais havia algumas horas, era noite, e tão logo o noivo saiu na manhã seguinte, correu para o médico.

Uma série de testes e amostras de sangue depois, ela foi chamada para a sala do doutor:

- Dona Júlia, eu sinto muito, mas a senhora sofreu um aborto.

Após um certo alívio, seguido de uma profunda tristeza, ela desandou no choro. Decidiu não se internar naquela hora e fugiu do hospital para casa quando ninguém percebeu. Já em casa, chorou por horas seguidas enquanto pensava se, num caso desses, seria feito um pequeno caixão para sua filha morta.

Preparou-se um banho quente, entrou na banheira, pegou uma lâmina e, perfurou ambos os pulsos. Primeiro o esquerdo, com dois centímetros, depois o direiro, com apenas um. E com os braços dentro da água que esfriava, desfaleceu.

"Serei eu mesma o caixão de minha filha", dizia o bilhete que encontrei na pia naquela noite. Assim é a história de como perdi, em tão pouco tempo, um mundo que não pedi, mas meu, e teu, minha pequena Juliana Delagre.

Juan

4 Comments:

Blogger Bruno said...

Nenê! Como você faz uma coisa dessas? Eu não esperava por aquilo no final, estou desconcertado, ferido! Se era essa a sua intenção, conseguiu. Mas é um pouco cruel conosco que você passe tanto tempo descrevendo uma relação tão terna (e você fez tão bem! quantos bons momentos da sua escrita!) e depois destrua com ela em alguns parágrafos sangrentos... A idéia de que o narrador era na realidade o noivo deve ter te ocorrido próximo do final porque você encarna o sujeito desamado e pune as duas com requintes! Por quê? Ciúme? Enfim, vou deixar de análises, na certa vai intrigar os caras da unicamp como me intrigou... Se quiser conversamos mais depois.

9:39 AM  
Anonymous Anônimo said...

Bem, demorei um pouco, mas aqui estou, e novamente deliciada ao ver como você descreve com maestria fatos e sensações, e consegue transmitir bem sentimentos como nostalgia, tristeza, sem cair no pedantismo.
O único porém é que eu senti falta de um maior aprofundamento dos conflitos internos da personagem, você transmitiu bem os sentimentos da Júlia, mas se os tivesse explorado um pouco mais, teria fluído com mais naturalidade o final no qual ela se suicida.
De qualquer forma, esse detalhe não tirou nem um pouco o mérito do texto, que como todos os outros, é um grande prazer de ser lido.
Acho que é só honey...
Ps: Não demora pra postar de novo, tá?

8:01 PM  
Anonymous Anônimo said...

Bom eles ja definiram bem o que eu gostaria de dizer... Voce escreve com maestria e sabedoria... Parabens (apesar de vc te-la matado no final!) haha
Adorei e pode ter certeza que sempre estarei por aqui ta ;)
Bjs querido

3:00 PM  
Blogger Fabi said...

nenê,eu adorei! não imaginava que o narrador fosse o noivo também e eu adoro os seus detalhes!:)

9:05 AM  

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