domingo, março 25, 2007

Capítulo Décimo Terceiro - Lacrimosa



Desde que parei de fumar nunca mais olhei pela janela. Que hábito estranho eu possuia, pois apenas com o cigarro permitia tirar uma pausa do mundo e observar incógnito a paisagem, a cidade. Que prazeres ocultos a nicotina esconde: o cinza vira uma cor até. Mas, alertado por muitos, privei-me daqueles minutos diários de observar por aquele retângulo de vidro. A justificativa muitas vezes vem plausível: viver mais. Que beleza, não?
O cigarro roubar-me-ia 15 anos de vida! Perderia o casamento de meu filho, ou o nascimento de meus netos talvez. E não teria a grande recompensa de saber que fiz minha parte como ser humano, passei meus genes à frente, fui responsável por criar parte de um futuro na história da civilização. A decadente e cega civilização terá um futuro graças ao meu suor. Dá quase vontade de agradecer por estar vivo ou querer viver mais nesse mundo doente.
Sim, o mundo é doente. Sofre de uma obsessão generalizada pela vida. Claro que vejo alguns dos bens que isso pode trazer, afinal tive felicidades em minha existência. Porém, a morte não iria colocar um fim em toda preocupação egoísta com felicidade? E não é a felicidade que realmente move o instinto humano? Nos ajustamos para sermos felizes. Aprendemos a andar, falar, ler, escrever, trabalhamos, consumimos, fazemos guerras para aumentar ou apenas sustentar nossa felicidade e tudo pelo motivo de termos sido criados com a errônea idéia de que é difícil ser feliz.
Agora já é tarde para desaprender essa receita, para esquecer que a satisfação só se encontra em desempenhar um papel e fazê-lo melhor que seu vizinho. Fica nua a vontade de viver mais: não queremos que o jogo acabe antes de estarmos ganhando e, quando ganhamos, não queremos parar de jogar.
A depressão, a desistência, a busca por um caminho novo (nem que este seja a morte), só estas são as verdadeiras filosofias. Os únicos sábios são os que já morreram ou que decidiram virar espectadores de toda essa doença global e cuja curiosidade por saber até onde pode crescer a ignorância alheia é o único vínculo com essa insalubre realidade. E não podemos fechar o círculo dessa segunda categoria apenas em torno dos apáticos, loucos e marginalizados. É mister incluir também os felizes incondicionais: todos aqueles que andam sempre com um sorriso no rosto apesar de quaisquer aflições que a vida os proporcione. Aqueles que por demasiada inteligência ou burrice nunca assimilaram a traiçoeira lição da felicidade vinculada ao esforço. Estes são os únicos felizes pois nunca precisaram de motivos para sorrir.
Os demais, que como em mim a Escola incutiu a tristeza como sendo o único estado inercial, vez que aprenderam a ser tristes não podem mais ser salvos senão pela morte. E uma ironia nesse quadro é: aqueles acreditando existir qualquer sorte após morrerem são os mais relutantes em erguer a mão contra sua própria essência rubra.
Malditas sejam as sutilezas das traquinagens religiosas que previram até isso, que passaram aos homens tristes a idéia de a felicidade encontrar-se Nele somente. Invejo e repudio esses que ainda carregam em si alguma esperança de que o consuetudinário há de levá-los a aguma redenção. Já cri nisso e já cri em Deus com tamanha vontade que desejei ser Ele e justamente nesse pecado encontrei minha libertação.
Que faria se fosse Deus? Talvez tornasse tudo mais fácil ou anulasse a existência, mas, provavelmente, faria o que ele faz e voltaria a fumar.

2 Comments:

Blogger Jéssica Santos said...

Muito muito bom Nê seu texto
bem saudades
te amo
Jeh

5:41 PM  
Anonymous Anônimo said...

Raul Pompéia também estava revoltado. Lembra?

Amo!

6:30 AM  

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